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Saberes tradicionais e conservação: caminhos para uma co-gestão das áreas protegidas


Apesar de desempenharem um papel fundamental na conservação da biodiversidade, as comunidades tradicionais continuam sendo sistematicamente excluídas dos processos de criação e gestão das áreas protegidas. Essa exclusão, muitas vezes sutil e silenciosa, tem gerado conflitos socioambientais persistentes e complexos, com impactos negativos tanto para a conservação da natureza quanto para o bem-estar de povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e agricultores familiares.


Um estudo recente, realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Instituto Tecnológico Vale (ITV), teve como objetivo compreender de que forma os conflitos socioambientais vêm sendo abordados pela ciência ao longo do tempo.


O artigo, intitulado “Socio-environmental Conflicts and Traditional Communities in Protected Areas: A Scientometric Analysis”, foi publicado na revista Journal for Nature Conservation. A pesquisa analisou 263 artigos científicos publicados entre os anos de 1990 e agosto de 2024 ao nível global, nas bases de dados Scopus e Web of Science, cujos resultados revelaram lacunas importantes na produção científica sobre o tema, além de gerar recomendações para uma gestão mais justa, inclusiva e eficaz das áreas protegidas.


O que a ciência mostra sobre os conflitos?


A pesquisa identificou que os conflitos entre comunidades tradicionais e áreas protegidas vêm aumentando tanto em volume quanto em diversidade. As principais tensões são geradas por:


1) Acesso a recursos para subsistência: Envolvendo a limitação ao acesso a pesca, caça, coleta de frutos e agricultura familiar que são práticas fundamentais para a alimentação e renda das comunidades tradicionais. A imposição dessas regras ou impedimento, muitas vezes impostas sem diálogo, rompem ciclos ancestrais de uso sustentável da natureza, gerando insegurança alimentar e marginalização social.


2) Gestão excludente das áreas protegidas: As comunidades raramente participam das decisões sobre a criação e manejo das áreas protegidas. A falta de consulta prévia e o desrespeito ao conhecimento tradicional resultam em políticas que muitas vezes não atendem às realidades locais. Esse modelo centralizado gera ressentimentos e fragiliza a eficácia da conservação. A inclusão comunitária é essencial para promover justiça socioambiental.


3) Conflitos com a fauna silvestre: Comunidades enfrentam prejuízos com a destruição de plantações, ataques a animais domésticos e até riscos à vida humana. Grandes mamíferos como elefantes, leões, onças e búfalos são os principais envolvidos. A intensificação desses conflitos ocorre pela perda de habitat e escassez de recursos naturais. A convivência pacífica exige soluções adaptadas e inclusivas.


4) Conflitos territoriais e direitos à terra: Muitas áreas protegidas foram criadas sobre territórios ocupados ancestralmente por comunidades tradicionais. A negação de direitos fundiários leva a disputas legais, remoções forçadas e gerando insegurança ou aumento de problemas sociais. O reconhecimento da posse coletiva da terra é fundamental para reduzir tensões e garantir autonomia. Esse tipo de conflito simboliza a luta global por justiça territorial.


5) Impactos culturais e socioeconômicos: A criação de áreas protegidas pode desestruturar modos de vida baseados na relação simbólica com a natureza. Proibições de atividades tradicionais afetam rituais, crenças e conhecimentos passados entre gerações. A cultura local sofre um apagamento silencioso.


6) Falta de reconhecimento e participação comunitária: A ausência de representação nos processos decisórios reforça desigualdades históricas e aprofunda os conflitos. Mesmo com avanços legais, muitas comunidades continuam excluídas da governança das áreas protegidas. Sem participação real, políticas ambientais ignoram as necessidades locais. O protagonismo comunitário e a co-gestão de áreas protegidas ainda são lacunas críticas na conservação.


Principais causas de conflitos entre comunidades tradicionais e gestões de áreas protegidas.   Fonte: os autores.
Principais causas de conflitos entre comunidades tradicionais e gestões de áreas protegidas. Fonte: os autores.

Essas tensões concentram-se principalmente em reservas naturais e parques nacionais, espaços onde as regras de conservação frequentemente desconsideram os modos de vida e as cosmovisões das populações locais. Embora existam mecanismos legais de consulta e participação, como o direito ao consentimento livre, prévio e informado, esses instrumentos muitas vezes são ignorados ou aplicados de forma ineficaz.




Conhecimento local ainda é pouco valorizado


Outro dado relevante é que 66,54% dos estudos analisados têm como foco populações não indígenas, enquanto apenas 16.73% tratam exclusivamente de povos indígenas, revelando uma sub-representação preocupante de pesquisas com uma abordagem mais abrangente sobre as comunidades tradicionais como um todo. Esse desequilíbrio limita a compreensão das diversas realidades socioculturais e ecológicas vivenciadas por esses povos, além de enfraquecer o reconhecimento e a valorização de seus saberes no contexto da conservação da biodiversidade.


A maior parte dos estudos investiga comunidades não indígenas. Fonte: os autores
A maior parte dos estudos investiga comunidades não indígenas. Fonte: os autores

“Embora a ciência reconheça a importância desses povos para a conservação, eles ainda são tratados como obstáculos, e não como aliados”, destaca Everton Cruz da Silva, doutorando em Ecologia pela UFPA.

Para a pesquisadora Mayerly Alexandra Guerrero-Moreno, doutoranda da UFOPA, o cenário atual evidencia a necessidade de romper com modelos de conservação excludentes: “Incluir as comunidades tradicionais no planejamento e na gestão das áreas protegidas é uma questão de justiça — mas também de eficácia. Sem elas, a conservação não se sustenta.”


Por que incluir é conservar?


O estudo reforça que as políticas públicas precisam ser mais inclusivas e adaptadas às realidades locais, incorporando os saberes tradicionais não como obstáculos, mas como parte essencial das soluções para a conservação. Em diversas regiões do mundo, experiências de co-gestão de áreas protegidas têm demonstrado que o envolvimento ativo das comunidades promove maior adesão às regras de proteção ambiental, fortalece a governança local e gera

melhores resultados socioambientais.


“A sustentabilidade das áreas protegidas depende da valorização do conhecimento tradicional e da construção de políticas que respeitem os direitos territoriais e culturais dessas populações”, ressalta o professor Dr. José Max Barbosa Oliveira-Junior, da UFOPA.

Ciência amazônica em destaque


Embora a maioria dos estudos analisados tenha como foco os países do Sul Global, como Brasil e Índia, a liderança na produção científica ainda se concentra em instituições do Norte Global. Esse desequilíbrio expõe uma prática conhecida como “ciência de paraquedas”, em que pesquisadores estrangeiros conduzem estudos em territórios biodiversos sem muitas vezes possibilitar o envolvimento efetivo de cientistas e das comunidades locais, deixando pouca contribuição duradoura para a região e tratando muitas vezes seus habitantes como meros coletores de dados ou objeto de estudo.


“Ciência de paraquedas”: pesquisadores estrangeiros são maioria nos estudos de territórios biodiversos do Sul Global sem possibilitar o envolvimento efetivo de comunidades ou cientistas locais. Fonte: os autores
“Ciência de paraquedas”: pesquisadores estrangeiros são maioria nos estudos de territórios biodiversos do Sul Global sem possibilitar o envolvimento efetivo de comunidades ou cientistas locais. Fonte: os autores

Esse cenário evidencia a necessidade urgente de fortalecer a ciência produzida por instituições e pesquisadores amazônicos, garantindo maior protagonismo, autonomia e justiça epistêmica na definição das agendas de pesquisa e conservação. Para isso, é fundamental investir em estruturas e instituições já presentes nas regiões mais distantes, frequentemente negligenciadas pelos grandes centros.


Com apoio adequado, essas iniciativas podem promover estudos mais conectados à realidade local, aprofundar o conhecimento sobre os ecossistemas amazônicos e formar novas gerações de cientistas. Pesquisadores que vivem e atuam na Amazônia têm uma compreensão singular do território, o que lhes permite formular perguntas e propor soluções alinhadas com os desafios e potencialidades da região.


O conhecimento que produzem, construído em diálogo contínuo com o ambiente e as comunidades, contribui para tornar a ciência mais eficaz e útil para a vida na floresta. A proximidade com populações ribeirinhas, indígenas e urbanas também favorece a participação ativa das comunidades na produção do conhecimento.


Quando os projetos se originam a partir de suas necessidades e saberes, fortalecem as comunidades, contribuem para a conservação da biodiversidade e demonstram que é possível integrar ciência, justiça social e ação climática. Essa abordagem contrasta com modelos de pesquisa externos, que muitas vezes extraem dados da região sem trazer benefícios reais para seus habitantes — e, em alguns casos, ainda marginalizam os pesquisadores locais.


“Valorizar a ciência realizada na Amazônia é essencial para desenvolver soluções mais justas, eficazes e sustentáveis para toda a região. No conjunto, essas ações contribuem para expandir o entendimento sobre o bioma amazônico e reforçam os esforços de conservação da sua extraordinária biodiversidade”, destaca o professor Dr. Leandro Juen, da UFPA.

“Nosso objetivo é alinhar o conhecimento científico à conservação e ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais, promovendo estratégias eficazes para a gestão das áreas protegidas e a valorização dos saberes locais”, destaca o professor Dr. Leandro Juen, da UFPA.

Este estudo integra as ações do INCT-SynBiAm Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sínteses da Biodiversidade Amazônica e do PPBio-AmOr Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia Oriental, representando um passo fundamental para compreender os desafios enfrentados pelas comunidades tradicionais nas áreas protegidas e como superá-los por meio de políticas mais inclusivas e fundamentadas em evidências científicas.


A pesquisa foi conduzida por uma equipe interdisciplinar composta por Everton Cruz da Silva (UFPA), Mayerly Alexandra Guerrero-Moreno (UFOPA), Fernando Abreu Oliveira (UFOPA), Karina Dias da Silva (UFPA), Leandro Juen (UFPA), James Ferreira Moura Junior (UNILAB), Fernando Geraldo de Carvalho (ITV) e José Max Barbosa Oliveira-Junior (UFOPA).



 
 
 

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