Ciência e saberes tradicionais devem caminhar juntos para garantir manejo equilibrado do fogo

O fogo, apesar de ser uma prática tradicional de manejo na Amazônia, tornou-se um dos
principais agentes de degradação ambiental . Seu uso descontrolado — intensificado pelas
mudanças climáticas, pelo desmatamento e pela expansão de atividades como pecuária,
agricultura e mineração — está afetando profundamente a biodiversidade, a qualidade do
ar e a saúde das populações locais.
Enfrentar os desafios do fogo na Amazônia exige a implementação de políticas que
combinem regulação ambiental, fiscalização eficaz, incentivo a práticas sustentáveis e
governança do uso do fogo. Para isso, a ciência deve caminhar junto aos saberes
tradicionais para garantir que o manejo do fogo seja feito de forma mais equilibrada e
eficiente.
O que a ciência mostra sobre o fogo na Amazônia?
Para analisar de forma detalhada os impactos do uso do fogo na Amazônia brasileira,
reunimos uma equipe de pesquisadores das Universidades Federais do Oeste do Pará
( UFOPA ) do Pará ( UFPA ), e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira ( UNILAB ). Juntos, analisamos a produção científica sobre o uso do fogo na
Amazônia brasileira. Dessa pesquisa resultou o artigo "The Impacts of Fire Use in the
Brazilian Amazon: A Bibliometric Analysis", publicado na revista International Journal of
Wildland Fire .
Analisamos 192 artigos científicos das bases de dados Scopus e Web of Science e
identificamos que o ano de 2020 registrou o maior número de publicações sobre o tema.
Esse aumento coincide com um dos períodos mais críticos de queimadas na região, reflexo
Essas políticas enfraqueceram a fiscalização e permitiram práticas que comprometeram a
sustentabilidade da floresta e, consequentemente, das populações que dependem dela.

Os impactos do uso do fogo na Amazônia Brasileira são múltiplos e interconectados. Entre
os principais impactos identificados no estudo estão:
1) Degradação ecológica: o uso recorrente do fogo, especialmente associado ao
desmatamento e à expansão agropecuária, compromete a biodiversidade, degrada o solo e
altera o equilíbrio dos ecossistemas, promovendo a transição de florestas tropicais densas
para paisagens abertas e empobrecidas. Esse processo afeta de forma direta a fauna e a
flora da região. Sua gravidade é intensificada por eventos climáticos extremos como as
estiagens , que passaram a ser cada vez mais frequentes no Bioma.
2) Emissões e poluição: a queima de biomassa florestal libera grandes volumes de gases de
efeito estufa, agravando o aquecimento global e contribuindo para que a Amazônia deixe de
atuar como sumidouro de carbono. A fumaça das queimadas, por sua vez, se espalha além
das fronteiras locais, afetando a qualidade do ar e os regimes climáticos.
3) Mudanças climáticas: a perda de biomassa reduz a capacidade da floresta em regular o
ciclo hidrológico, afetando a evapotranspiração e, consequentemente, a formação de
chuvas em diferentes partes da América do Sul. Isso favorece o prolongamento das estações
secas, ampliando a vulnerabilidade da floresta a novos ciclos de incêndios. Além disso,
diminui a recarga do lençol freático e, consequentemente, das águas dos igarapés e rios da
região.
4) Prejuízos socioeconômicos: as perdas econômicas causadas pelo uso inadequado do fogo
afetam principalmente as comunidades tradicionais e os pequenos agricultores, que são os mais afetados, enfrentando perdas de meios de subsistência. Isso gera insegurança
alimentar e aumento nos conflitos fundiários. Mesmo aqueles que possuem recursos para
controlar seus próprios incêndios frequentemente sofrem danos causados por focos de fogo
vizinhos.
5) Impactos à saúde e à qualidade de vida: a exposição prolongada à fumaça das
queimadas está associada ao aumento de doenças respiratórias, particularmente entre as
crianças e os idosos, além de potenciais danos genéticos, inflamações sistêmicas e
disfunções cardiovasculares, assim como a possibilidade de desenvolver câncer a longo
prazo. Essa situação se torna ainda mais preocupante quando é considerada a combinação
de fatores ambientais, sociais e estruturais, que limitam o acesso das populações afetadas
aos serviços médicos e a condições adequadas de saneamento, alimentação e moradia.

Fortalecimento da ciência na Amazônia
Apesar da grande produção científica sobre o tema, o estudo revelou um desequilíbrio na
distribuição geográfica das pesquisas. Embora o Brasil lidere os estudos, uma cifra
representativa das pesquisas na Amazônia brasileira ainda é conduzida por países do Norte
Global, deixando os pesquisadores e instituições amazônicas em uma posição secundária.
Isso reforça a necessidade urgente de fortalecer a ciência produzida na região, garantindo
maior protagonismo da pesquisa local na formulação de políticas e estratégias eficazes para
a gestão do fogo.

Outro dado importante revelado no estudo é a predominância de pesquisas sobre incêndios
florestais em comparação com a queima de biomassa e a prática de corte-e-queima. Isso
reflete, em parte, a crescente preocupação global com os incêndios na Amazônia, mas
também indica a necessidade de se entender melhor o papel das práticas tradicionais de
uso do fogo e buscar alternativas sustentáveis.

As queimadas estão profundamente enraizadas nas atividades agropecuárias da região, o
que torna sua regulamentação um desafio complexo, que exige equilíbrio entre o respeito
às práticas locais e o combate às queimadas ilegais.
Mesmo quando realizadas em escala local ou regional, as consequências das queimadas são
gerais e criam uma ameaça crítica ao equilíbrio climático e à biodiversidade mundial. Nosso
estudo mostra, portanto, que o aumento da fiscalização e a criação de políticas mais
eficazes são essenciais para coibir o uso criminoso do fogo, que muitas vezes é até
estimulado ou orquestrado por verdadeiras organizações fora da lei.
Ciência e conhecimento tradicional: a chave para soluções mais eficazes
Diante desse cenário, destacamos que o conhecimento tradicional das comunidades
amazônicas deve ser valorizado e integrado às políticas públicas. Reconhecer os saberes locais e práticas tradicionais é fundamental para o desenvolvimento de estratégias de
manejo mais eficazes. Para isso, as colaborações interdisciplinares são de extrema
importância: o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares e a colaboração entre a
academia, governo e comunidades são essenciais para encontrar soluções contextualizadas
que protejam a biodiversidade da Amazônia e melhorem a qualidade de vida das
populações locais.
Essa pesquisa é um passo fundamental para compreendermos os impactos do fogo na
Amazônia e como ele afeta tanto a biodiversidade quanto as populações que dependem da
floresta. Integrado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Sínteses da Biodiversidade
Amazônica (INCT-SynBiAm) e ao Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia
Oriental (PPBio-AmOr), nosso estudo tem o objetivo é alinhar o conhecimento científico à
conservação e ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais, promovendo
estratégias eficazes para a gestão do fogo e a preservação da Amazônia.
Além dos autores desse texto, também participaram da pesquisa Amanda Kesley Cardozo
Cancio (UFOPA), Fernando Abreu Oliveira (UFOPA) e Thiago Almeida Vieira, da UFOPA;
Karina Dias-Silva (UFPA) e Lenize Batista Calvão, da UFPA; e James Ferreira Moura Junior da
UNILAB.
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