Publicado originalmente no Portal Valor Econômico
A busca pelo bem-estar da humanidade é uma meta unânime e nobre, e consequentemente qualquer iniciativa que permita nossa qualidade de vida deve ser difundida e, idealmente, amplamente usada. Hoje em dia não existem dúvidas da relação direta e positiva entre a biodiversidade e o bem-estar da humanidade.
Por isso, é muito bem-vinda qualquer iniciativa que vise valorizar áreas com floresta em pé, ou com vegetação nativa para ser mais nacionalmente abrangente. Portanto a ideia, traduzida para o nosso território, é manter a vegetação nativa em qualquer Bioma que ocorre no Brasil.
Uma das novas iniciativas, que tem sido difundida mundo afora após o lançamento do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal em 2022, são os créditos de biodiversidade. Trata-se de uma iniciativa que pode ampliar o financiamento privado para conservar a natureza, e dar algum retorno financeiro para o setor produtivo interessado. O que geraria um interessante jogo de “win-win” para todos os setores.
Algo que chama a atenção de forma positiva, e que aparece na literatura como quase um consenso, é a meta de ganho líquido com os créditos em biodiversidade. Portanto, como bem argumentado na literatura específica, os créditos de biodiversidade não devem ser usados como compensação de degradação, para qual existe legislação específica.
Segue um exemplo de um dos muitos textos sobre o uso dos créditos de biodiversidade para buscar os ganhos líquidos: Four ways biodiversity credits can support your nature strategy - The Biodiversity Consultancy (Quatro maneiras pelas quais os créditos de biodiversidade podem apoiar sua estratégia de natureza - e uma que provavelmente não pode, escrito por Edward Pollard para o The Biodiversity Consultancy)
O termo Biodiversidade foi lançado décadas atrás pelo biólogo Edward O. Wilson (Professor de Harvard) para abarcar não somente todas as formas de vida, como também a diversidade entre e dentro das espécies (por exemplo, entre as populações locais da fauna e flora). Sendo, portanto, muito mais abrangente do que a simples contagem de espécies. Alguns anos depois de ter sido lançado, a organização internacional Convention on Biological Diversity (CBD) adotou essa abordagem abrangente da biodiversidade, e ainda incluiu os ecossistemas como unidade espacial (https://www.cbd.int/).
Quando pensamos nas vantagens e ganhos que os créditos de biodiversidade podem fornecer, nós devemos idealmente ter em mente o funcionamento dos ecossistemas, e a conservação biológica a médio e longo prazo (e uma perspectiva do tempo evolutivo). Essas duas abordagens são centrais na manutenção dos processos naturais, e consequentemente do bem estar da humanidade. Por isso, como vou explicar, necessariamente formas de estimativa de diversidade funcional e filogenética devem ser usadas nos cálculos dos créditos de biodiversidade.
As espécies têm funções distintas e com diversas magnitudes de importância para os ecossistemas, e as análises de diversidade funcional contemplam com essas nuances pois analisam caracteres biológicos das espécies (e algumas vezes das populações locais da fauna e flora) e que nos ajudam a entender como elas influenciam os ecossistemas.
Alguns exemplos são aspectos fisiológicos (por exemplo capacidade maior ou menor de algumas espécies de plantas de fixar nitrogênio), morfológicos (área foliar que influencia na taxa de fotossíntese), comportamental (se a espécie da fauna é solitária ou forma grupos, e o tipo de dieta dos animais (dispersores de sementes e polinizadores).
A lista de caracteres biológicos é imensa, e só como exercício vamos pensar em algumas áreas com morcegos dispersores de sementes e outra área com morcegos polinizadores, e ainda assumindo espécies de morcegos com capacidade de voo diferenciadas em cada um desses grupos. Existem várias fórmulas matemáticas (que incluem variáveis contínua e categóricas) para mensurar a diversidade funcional que consideram tudo isso exposto acima em um único estimador, além da variação nas abundâncias que é uma outra característica intrínseca das espécies.
E, o que é importante, a diversidade funcional é uma forma independente das estimativas tradicionais de riqueza de espécies. Basicamente a diversidade funcional é capaz de mensurar uma outra dimensão da biodiversidade. Já as estimativas de diversidade filogenética usam caracteres que representam as variações das linhagens evolutivas (ou clados como é chamado na literatura) entre espécies e níveis hierarquicos maiores, permitindo que se faça avaliações de conservação além das feitas só com as espécies.
Por exemplo, podemos ter duas áreas e cada uma com seis espécies de mamíferos. No entanto, em uma das áreas tem seis espécies de primatas, e a outra área tem espécies variadas sendo: um marsupial, um tatu, um morcego, um ungulado (grupo dos porcos do mato, anta entre outros) um primata e um roedor. As duas áreas têm seis espécies, mas a quantidade de história evolutiva é completamente diferente. Não parece haver dúvidas sobre a importância dos créditos de biodiversidade ajudarem na conservação da própria biodiversidade e as estimativas de diversidade filogenética são a melhor forma para alcançar esse objetivo.
A questão que me motivou a escrever esse texto é que os créditos de biodiversidade, como originalmente formulados por instituições como The Biodiversity Consultancy e World Economic Forum e que inspiraram dezenas de estimativas de outras instituições no Brasil e no mundo, foram formulados usando unicamente a biodiversidade de espécies.
Esta forma de estimar a biodiversidade é também conhecida como diversidade taxonômica, e é a forma mais tradicional (e fácil) de estimar a biodiversidade. O ponto é que através desta diversidade é impossível avançar em estimativas que permitam alcançar metas que busquem o funcionamento dos ecossistemas e a conservação biológica.
Existem ainda propostas de estimar os créditos de biodiversidade através de estimativas de cobertura de vegetação nativa, e conectividade entre as áreas. No entanto, em um país onde existe grande pressão de caça e outras ameaças imperceptíveis aos satélites, me parece pouco adequado apostar os créditos de biodiversidade em lugares que possam estar sem a fauna.
Por isso, me parece que o ideal é que os créditos de biodiversidade incluam estimativas de biodiversidade, e especificamente de diversidade funcional e filogenética. Se isso for feito, os créditos de biodiversidade serão muito bem convertidos em ganhos para a natureza e, consequentemente, para o bem estar da humanidade
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